O excesso de telas e as consequências no desenvolvimento infantil
Férias escolares reacendem preocupação do uso de telas à noite por crianças e adolescente
Crianças e adolescentes estão passando tempo demais em telas de celulares, tablets e televisores? Quais consequências estão associadas a esse comportamento? Como promover o uso da tecnologia de modo a aproveitar todo seu potencial, ao mesmo tempo em que cuidamos do desenvolvimento neurológico, da saúde mental e da construção de relações sociais significativas nas novas gerações?
O uso excessivo de telas e como isso vem impactando no desempenho escolar e na saúde mental de crianças e adolescentes tem sido uma preocupação cada vez maior para o pediatra Daniel Becker, um especialista no assunto. Uma pesquisa realizada em 2023, revelou uma disparada no número de crianças brasileiras com menos de seis anos que já se conectaram à internet.
“Essas crianças e adolescentes vão perder em habilidades, em capacidades, em relacionamento, em autoconhecimento. Ele acha que está num grupo de milhares de amigos pertencentes, mas aquilo é uma ilusão”, diz.
Segundo Becker, o uso excessivo de aparelhos eletrônicos já é reconhecido mundialmente como um vício. De acordo com a pesquisa Comscore Tendências de Social Media, de 2023, o Brasil é o terceiro país que mais consome redes sociais no mundo. E os jovens, de acordo com dados da Fundaçao Getúlio Vargas (FGV), de 2019, passam em média 14 horas por dia nos aplicativos.
“Se isso está acontecendo com os adultos, com mais de 65% hoje se declarando viciados em celular, imagina então com as crianças, que não têm mecanismos de controle e não têm capacidades de combater a adição”, alertou.
Ao traçar um panorama histórico do uso de ferramentas digitais, Becker reitera: o uso desmedido de telas pode causar danos irreversíveis para o desenvolvimento de capacidades físicas e emocionais. “Até o advento da internet e das telas clicáveis, a gente sabia brincar, ler, assistir filmes, passear na rua, a gente sabia conversar longamente. A gente parece estar, gradualmente, perdendo essas habilidades. Eu comparo com a urgência climática. Se a gente continuar nesse caminho, estaremos todos expostos a desastres ecológicos cada vez mais devastadores, e para uma mudança cerebral sem precedentes”, avaliou.
Prejuízos de todo tipo
O pediatra enumera uma série de prejuízos causados pelo uso prolongado e inadequado desses dispositivos. “Não há mais dúvida nenhuma, na sociedade e na ciência, sobre os danos múltiplos e multidimensionais que o mau uso e o excesso de telas estão causando na infância e adolescência”, afirma.
Os prejuízos, segundo o médico, vão desde os físicos, como a prevalência de hábitos sedentários, o desenvolvimento de distúrbios visuais como miopia, e alterações no sono, até comprometimentos cognitivos e emocionais, como a falta de atenção e o pouco desenvolvimento de habilidades interpessoais. A situação é especialmente mais preocupante quando o contato com as telas ocorre em crianças muito pequenas, com até 2 anos de idade.
“Nos pequenos, já está mais do que comprovado. Há estudo com 7 mil crianças mostrando que o uso de telas, em menores de um ou dois anos, leva prejuízos ao desenvolvimento motor, cognitivo e emocional, mais tarde nessa criança mais velha”, diz. São distúrbios de aprendizado e de atenção, por exemplo. A arquitetura que privilegia vídeos curtos, comuns às redes sociais, fragmenta a capacidade de concentração das crianças.
“Ela vai perdendo a habilidade fundamental da leitura, não consegue fixar a atenção numa fala que dure um pouco mais de tempo porque passa a estar acostumada com a hiper estimulação dos vídeos curtos e dessa troca de conteúdo muito rápida”, detalha Becker.
Em termos sociais, outro risco das telas apontado por ele tem a ver com o contato de crianças e adolescentes com conteúdo e ideologias extremistas, que pregam violência e preconceito, como machismo, misoginia, racismo, nazismo e similares. Ou mesmo a vulnerabilidade a ações de criminosos, com riscos de exposição à pedofilia, prática de assédio e cyberbullying.
Nesse sentido, defende o médico, é preciso que o governo e o Congresso Nacional avancem na aprovação de uma lei sobre liberdade, responsabilidade e transparência das plataformas de internet e redes sociais.
Os perigos de um mundo irreal
O pediatra cita um estudo publicado pela revista Nature, que identificou que o uso de redes sociais de duas a sete horas diárias, causou uma queda brutal de satisfação com a vida entre as meninas, levando a quadros graves de depressão.
Transtornos de imagem corporal e o afastamento de relações afetivas com familiares e amigos são algumas das consequências apontadas pelo pediatra do uso desregulado das redes sociais. Isso sem falar dos perigos de golpes, vazamento de dados e riscos à privacidade.
“O aumento de suicídio de crianças no mundo inteiro chama a atenção, é uma crise internacional de adoecimento mental e emocional, e as telas são parte fundamental disso. Elas levam a uma espécie de hipnose e passividade. As crianças perdem a capacidade de criar, de imaginar, fantasiar. Na tela, há o consumo passivo de conteúdo alheio, ela fica sem atividade cerebral positiva”, afirma.
De acordo com Becker, outro cuidado a ser observado é assegurar que crianças e adolescentes consigam ter horas de sono reparadoras. Para tanto, é preciso que os pais e/ou responsáveis estejam atentos, principalmente à noite, quando a garotada se sente “livre” do patrulhamento dos adultos, e aí vara a noite ligada nas telas.
“O sono está sendo perturbado pelo mundo digital. O recado aqui vai para os adultos também: é importante desligar o celular, pelo menos, meia hora antes de dormir e realizar atividades não digitais, uma conversa para relaxar, leitura de histórias com os filhos, que é um momento afetivo muito bonito”, completa.
Cérebro despreparado
Na adolescência, uma parte importante do cérebro humano não está totalmente desenvolvida: o córtex pré-frontal, que é responsável pelo controle de impulsos, reação a ameaças e recompensas. Com isso, o uso excessivo de telas e redes sociais pode levar a situação para as quais o cérebro jovem ainda não está preparado.
Isso não significa que os dispositivos causarão problemas de saúde mental a todos os usuários, mas eles podem ser amplificados em quem já está mais vulnerável.
“Você pega, por exemplo, uma menina de 12 ou 13 anos, que começa a se interessar pela beleza. Ela vai começar a ver um vídeo de moda, maquiagem ou exercício. O algoritmo começa a radicalizar esse conteúdo rapidamente e, em pouco tempo, está recebendo vídeos que estimulam ela a fazer dietas de 400 calorias por dia”, ressalta Becker, apontando que esse tipo de conteúdo pode resultar em distorção da autoimagem e desenvolvimento de transtornos alimentares como anorexia ou bulimia.
Sobre como a família pode ajudar a coibir essa superexposição, o pediatra indica que a supervisão é o primeiro ponto. A segunda coisa a ser feita, continua o médico, é criar uma alternativa atraente no mundo real. “Criar um mundo bom do lado de fora do celular, é uma tarefa essencial das famílias, mas não é fácil também. Oferecer um mundo bacana, para competir com o universo do celular que é tão bacana para eles”, observa.
A tecnologia como aliada
As crianças têm facilidade em lidar com a tecnologia e também aprendem mais fácil com apoio visual. Por isso, quando ela é associada a atividades com fins interativos e pedagógicos, como memorização e concentração, ela é uma grande aliada no desenvolvimento infantil.
Além disso, outros benefícios do uso da tecnologia, incluem o desenvolvimento de novas habilidades (como programação, por exemplo), melhora do raciocínio lógico, estimulação da criatividade e melhora da autonomia. Mas claro, tudo isso deve ser realizado de maneira pedagógica e com supervisão.
Embora a tecnologia possa trazer benefícios, como os exemplos citados, lembre-se que o excesso de telas pode ter consequências negativas para a saúde das crianças.