Pescado da Lagoa de Araruama é preferência na culinária regional
“Esse peixe é da lagoa?” Essa é uma das perguntas mais ouvidas entre os estandes do Mercado Municipal de Peixe de São Pedro da Aldeia, na Região dos Lagos do Rio. O questionamento vem dos clientes que buscam aquele pescado de qualidade para preparar pratos cheios de tradições litorâneas. Muito mais que uma preferência, a pergunta traduz um senso comum de que o pescado da Lagoa de Araruama possui um gosto diferenciado, ainda mais saboroso do que pode ser encontrado nas demais regiões do estado e, até mesmo, do Brasil. Essa predileção popular é repassada de geração em geração, assim como a própria pesca artesanal na laguna, e evidencia o processo de recuperação do ecossistema que fornece a base da rica gastronomia regional, composta por camarões e peixes ali pescados.
Parafraseando o ditado popular “a voz do povo é a voz de Deus”, a preferência pelo pescado lagunar é uma unanimidade entre os consumidores locais. “O peixe da lagoa é mais saboroso, tem um paladar melhor. Como tudo quanto é tipo de peixe, mas prefiro os da lagoa, como a Tainha e a Perumbeba”, disse a consumidora do mercado de peixe aldeense Deise Lúcia Santos.
O vendedor de peixes Ronaldo Souza conta que o pescado é o mais procurado, mesmo em período de defeso, intervalo em que a pesca é proibida para reprodução e preservação das espécies. “O peixe da lagoa é muito procurado, mesmo não tendo o pescado agora por causa do defeso. A Tainha, por exemplo, é o carro-chefe. Os peixes são mais saborosos, e o pessoal que conhece a cidade já sabe. Os peixes daqui também são mais baratos e acessíveis para compra”, afirmou.
A aposentada Edilma Nunes, natural de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, destaca que a vinda a São Pedro da Aldeia não é a mesma se não houver um peixe da lagoa para saborear. “Eu já saio de Nova Iguaçu pensando no peixe, né? Já chego pensando em comer um Carapicu, uma Tainha. Os que ficam em casa já pedem pra eu levar um peixe também. Esse costume é desde a época dos meus pais. Esse peixe daqui é uma maravilha e já faz parte da gente”.
A moradora do bairro Balneário das Conchas Monique Rodrigues compartilha da mesma opinião. “Eu acho os peixes da lagoa os mais saborosos. Sou filha e neta de pescador raiz aqui de São Pedro. Aprendi a saborear cada espécie da lagoa. Na verdade, nem sei se é o sabor que me encanta ou se era amor com que esses pescados chegavam até minha casa”, contou.
Pescadora desde os 13 anos, Irani Sampaio Costa , moradora do bairro Baleia, afirma, com grande orgulho, a qualidade do seu pescado. “Em todo o meu tempo de vida, nascida e criada na pesca, posso afirmar que o melhor peixe que temos é o peixe da Lagoa de Araruama, sem sombra de dúvidas. E é assim em todos os tipos de peixe, no camarão e até no siri. São todos muito saborosos por conta da salinização, que é muito diferente dos demais locais”, contou empolgada.
A pescadora narra, também, que muitas pessoas procuram os peixes ainda no cais da praia por conta do sabor especial. “Acabo conhecendo muita gente de vários locais que vem até à beira da lagoa comprar peixe da gente. O fato de vendermos os peixes bem frescos, muitas das vezes logo após a pescaria, faz com que ele tenha um sabor melhor”, afirmou. Quando perguntada sobre a sua preferência, a pescadora disparou: “As Tainhas que vêm de fora não são a mesma coisa. Não se compara com a nossa. Quando a lagoa está no período de defeso, a gente espera acabar pra poder comer um peixe bom de verdade”, confessou.
Sobre a revitalização da lagoa, Irani lembra de um período difícil, mas comemora o momento atual da lagoa e da pesca. “Houve um tempo em que a nossa lagoa sofreu muito com a poluição. Eu tive que procurar um trabalho fora porque a pesca já não dava mais renda. Mas agora a lagoa voltou com força total. De 2017 para cá, temos visto uma melhora muito grande no pescado, com espécies aparecendo novamente nas nossas águas. Isso faz com que a qualidade do peixe, que já é muito bom, melhore ainda mais”.
Da pesca aos pratos
A culinária praieira, baseada nas riquezas da Lagoa de Araruama, revela uma grande variedade e qualidade gastronômica. Seja nos pratos mais simples dos quiosques à beira d’água ou em cardápios de restaurantes mais sofisticados, o pescado lagunar se mostra um elemento precioso para os amantes de uma boa comida.
O professor de gastronomia do Instituto Federal Fluminense (IFF) campus Cabo Frio e mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais Luiz Fernando de Melo Brettas destaca alguns produtos de qualidade e sabores singulares vindos da lagoa.
“Sem dúvidas, podemos extrair produtos emblemáticos desse pescado. A ova da Tainha, por exemplo, é uma iguaria da gastronomia. Ela tem um valor agregado muito alto e sabor bem diferente, além de proporcionar outros produtos culinários a partir dela. Peixe salgado com banana é um outro exemplo de pratos tradicionais da região, com grande relevância histórica, vencendo, inclusive, festivais internacionais”, comentou.
Ainda de acordo com o professor, o sabor especial do pescado lagunar pode ter relação com as condições específicas do ecossistema e da região. “Primeiramente, o sabor de um produto local está atrelado às memórias afetivas das pessoas. No caso do camarão, quando comparado ao de cativeiro, podemos destacar os aspectos de espécies diferentes, além do uso de ração para alimentação do crustáceo, que no ambiente natural não existe. Naturalmente, você terá uma diferença de sabor. Já no caso da Tainha, é preciso um caso científico mais aprofundado. Mas acredito que a água gelada da região junto e a hipersalinidade da lagoa influenciam no sabor dos peixes, em geral. É uma possibilidade que precisa de uma análise maior para poder comprovar”, explicou.
Luiz Fernando também atribui a qualidade do pescado à manutenção da atividade da pesca artesanal na cultura regional. “Temos nesse cenário gastronômico um produto com um diferencial de sabor e qualidade por meio de um pescado fresco, direto da origem, com pouca intervenção e pouco tempo de demora entre a pesca e o prato. Temos produtos únicos e distintivos, que criam uma gastronomia característica e de grande identidade cultural da região. O camarão, a Tainha e a ova da Tainha são alguns desses produtos bem identitários”, concluiu.
Às margens da Lagoa de Araruama, no bairro Boqueirão, em São Pedro da Aldeia, o restaurante Sal da Terra é um dos vários empreendimentos locais que propõe aos consumidores um clima praieiro lagunar. O local oferece pratos como risoto de camarão ou, ainda, camarão no coco verde. “Temos como preferência usar o camarão da lagoa porque o sabor é mais intenso e concentrado. Mas não é comercialmente vantajoso devido ao tamanho pequeno”, ponderou o proprietário do local, o empresário Filipe Guia.
Sobre o belo cenário ofertado pela lagoa, o empresário analisa a importância da revitalização e manutenção do ecossistema. “A revitalização da lagoa dá mais vida às suas margens, o que potencializa o setor turístico, que faz aquecer todo o segmento e, consequentemente, temos um upgrade em nosso comércio”, disse.
Elos turístico e econômico
A gastronomia é um dos pilares do setor turístico. Na Região dos Lagos, cristaliza a identidade cultural e histórica da localidade. A boa culinária lagunar permite maior inserção do turista nas áreas banhadas pela lagoa, provocando sensações e criação de memórias. O peixinho à beira da lagoa, o pirão e camarão fazem parte da experiência turística do visitante que escolhe a região para os momentos de lazer.
Em São Pedro da Aldeia, uma das seis cidades banhadas pela laguna, uma parceria entre a gestão municipal e os empresários do setor gastronômico deu origem ao festival “Frutos da Lagoa”. O evento reúne restaurantes e similares na promoção dos sabores da culinária praieira e da alta gastronomia com base no pescado e nas riquezas da Lagoa de Araruama. A iniciativa acumulou duas edições somente no ano de 2022, quando foi estreada. A ação é considerada um diferencial no segmento turístico na região.
“Usamos a gastronomia, que é um produto forte da cidade, para atrair turistas que estavam hospedados em cidades próximas e precisaram percorrer diversos pontos da cidade para conferir o festival. O retorno foi imediato: os meios de hospedagem passaram a sinalizar um fluxo maior de reservas, e o turista internacional aportou em São Pedro da Aldeia, não só nos restaurantes, praias e quiosques, como também nos hotéis e pousadas, beneficiando toda a cadeia turística com o aumento do ticket médio destes visitantes. O Festival Gastronômico Frutos da Lagoa é celebrado por todo o trade e toda a cidade, gerando mais emprego e renda para a população”, contou a secretária de Turismo de São Pedro da Aldeia, Andrea Tinoco.
Sobre o peso da gastronomia para a qualidade do turismo de experiência, Andrea destaca a variedade culinária oferecida aos visitantes. “Os pratos tradicionais caiçaras são muito procurados, e nosso pescado farto garante a oferta destas delícias e atrai o turista de proximidade, que não perde a oportunidade de saborear a Tainha e o camarão da lagoa. Mas há também opções variadas, como o pescado defumado, presente em diversos restaurantes da cidade. Do hambúrguer de camarão ao filé de Carapicu, de Perumbeba e de Tainha, é possível unir a tradição da cozinha caiçara à mais alta gastronomia”, ressaltou.
Saneamento gera qualidade
Diferentemente do cenário registrado nas últimas duas décadas, a melhora na qualidade da Lagoa de Araruama é visível com a apresentação de tonalidades mais claras nas águas das praias, além do número crescente do pescado, registrado muitas das vezes nas redes sociais, e pelo reaparecimento de espécies de peixes, como a Perumbeba e a Carapeba, e de cavalos marinhos. Segundo os órgãos relacionados ao assunto, esse avanço está relacionado ao progresso no saneamento das cidades banhadas pelo ecossistema.
A Prolagos, concessionária responsável pelos serviços de saneamento básico em cinco municípios da Região dos Lagos, informou que a empresa já implantou 38 quilômetros de cinturão coletor de esgoto que contribuíram com a melhora da qualidade ambiental da lagoa, resultando em recordes de pescado, desenvolvimento do turismo local e geração de renda para a população. A previsão é que haja a implantação de mais 26 km de cinturão nas cidades de Arraial do Cabo, Cabo Frio, Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia.
Para apoiar as autoridades competentes na criação de políticas públicas em prol da preservação da Lagoa de Araruama, o projeto Imersão, uma parceria de cooperação técnica entre a Universidade Veiga de Almeida (UVA) e a Prolagos, realiza mensalmente o monitoramento da água da Lagoa de Juturnaíba. Amostras da água são recolhidas, analisadas no laboratório da UVA e encaminhadas para a concessionária e para os órgãos ambientais.
“Começamos as pesquisas no início do ano e já temos dados socioeconômicos interessantes da cadeia produtiva setorial pesqueira. Para cada um emprego de pescador dentro d’água na lagoa, são gerados até quatro outros empregos em terra nos setores envolvidos. A nossa estimativa é que a pesca na lagoa gere uma média de 7 mil empregos diretos e indiretos. Se fala muito na melhora da produção pesqueira da lagoa, mas é a primeira vez que o assunto é atestado técnico e cientificamente, que é a proposta do Imersão”, afirmou o coordenador do projeto, Eduardo Pimenta.
O Instituto Estadual do Meio Ambiente (Inea) foi questionado sobre a existência de mapeamentos ou pesquisas quanto ao pescado lagoa, mas afirmou apenas que “ações conjuntas atuam para a retomada da qualidade da Laguna de Araruama nos últimos anos, inclusive com bioindicadores, como os cavalos marinhos que retomaram o habitat da laguna ”.
Dentre as ações listadas pelo instituto, está a dragagem do Canal do Itajuru e da laguna, que vai ampliar a troca hídrica entre o oceano e a lagoa . De acordo com o órgão, a obra era uma demanda antiga dos pescadores e dos municípios envolvidos com o corpo hídrico lagunar.
Folha dos Lagos